Psicopatas
Crueldade nas veias
O que a ciência ja descobriu sobre
o mais frio dos criminosos - o psicopata
Jerônimo Neto
NESTA REPORTAGEM
Quadro: Os "criminosos natos" de Lombroso
A ciência pode um dia curar doenças como Alzheimer e aids, mas seria tolice imaginar um "remédio" para bandidos reincidentes. O crime não é um problema essencialmente médico – o que não significa que a pesquisa científica não tenha nada a dizer sobre ele. Nos últimos anos, foram registrados avanços consideráveis no estudo da mente criminosa. A genética vem desvendando interações complexas entre a natureza e o meio ambiente na formação de personalidades violentas; a psiquiatria tem refinado seus instrumentos de avaliação do distúrbio de comportamento anti-social, mais conhecido como psicopatia; e novas técnicas de mapeamento cerebral permitem descobrir diferenças entre o cérebro de uma pessoa ajustada e o de um psicopata. São progressos que, em alguma medida, podem, sim, auxiliar no combate ao crime.
A mente de ladrões e assassinos tem sido objeto de estudos médicos e biológicos há muito tempo – quase sempre com resultados decepcionantes. A busca de um tipo físico característico do criminoso, que orientou grande parte da ciência forense no século XIX, foi um fracasso completo. Não há como identificar um assassino ou um ladrão apenas pela configuração de seu crânio ou de suas feições faciais, como acreditava o criminalista italiano Cesare Lombroso (1835-1909). Muito influente em seu tempo – inclusive no Brasil –, a teoria de Lombroso atribuía o crime a um atavismo, uma recorrência de tendências primitivas que os seres humanos "normais" teriam superado no curso da evolução. Por esse raciocínio, os criminosos estariam, portanto, mais próximos dos animais do que o restante dos homens. E teriam marcas físicas diferenciadas (veja quadro). Se o formato das orelhas ou da mandíbula fosse mesmo indicador de comportamento criminoso, o trabalho da polícia seria bem mais fácil. Mas não é assim.
Os estudos científicos modernos têm concentrado esforços na análise de questões bem mais intangíveis, como a psicopatia, distúrbio psiquiátrico de diagnóstico complexo. O psicopata não é um deficiente mental e tampouco sofre de alucinações ou problemas de identidade, como pode ocorrer com as vítimas da esquizofrenia. É um sujeito, muitas vezes, com inteligência acima da média. Pode ainda ser simpático e sedutor – e usar essas qualidades para mentir e enganar os outros. Embora no plano intelectual entenda perfeitamente a diferença entre o certo e o errado, o psicopata não é dotado de emoções morais: não tem arrependimento, culpa, piedade nem vergonha. É incapaz de nutrir qualquer empatia pelo próximo. "Para um psicopata, atirar em uma pessoa e jogar fora um copo plástico são atos muito parecidos", diz o neurologista Ricardo de Oliveira-Souza, da Unirio. Oliveira-Souza e seu colega Jorge Moll – coordenador da Unidade de Neurociência Cognitiva e Comportamental da Rede Labs D'Or, no Rio de Janeiro, e pesquisador dos Institutos Nacionais de Saúde, nos Estados Unidos – têm feito mapeamentos do cérebro de psicopatas com técnicas de ressonância magnética de alta resolução. Em comparação com uma pessoa normal, o psicopata mostra menor atividade cerebral em uma série de áreas envolvidas no julgamento moral. As causas dessas diferenças, porém, ainda são desconhecidas. Supõe-se que um componente genético esteja envolvido. Quanto aos componentes sociais que determinam o surgimento da psicopatia, os cientistas consideram que a ocorrência de abuso infantil, por exemplo, pode ter influência no distúrbio. "Seja na forma de espancamento, seja na de estupro, o abuso é um fator de risco para a psicopatia, embora, por si só, não possa causá-la", afirma Oliveira-Souza.
Nem todos os psicopatas derivam para o crime. Mas a ausência de qualquer escrúpulo e a habilidade para manipular e enganar suas vítimas transformam os portadores do distúrbio em criminosos especialmente perigosos. É o caso do ex-motoboy Francisco de Assis Pereira, conhecido como "Maníaco do Parque". Condenado pelo estupro e morte de onze mulheres em 1998, ele costumava se apresentar a suas vítimas como caça-talentos de uma agência de modelos. Assassinos seriais como Assis Pereira constituem a variedade mais chocante da psicopatia, mas não a mais comum. O distúrbio tem uma incidência considerável também entre os crimes menos espetaculares. Ele afeta de 20% a 30% das populações carcerárias. Para a psiquiatra forense Hilda Morana, seria importante separar os portadores do distúrbio dos demais presos. Primeiro, porque não existe cura para a psicopatia, o que torna irrecuperáveis – e, conseqüentemente, mais perigosos – os criminosos do gênero. Depois, porque psicopatas são manipuladores inatos. "O risco de eles usarem os outros presos em seu benefício ou passarem a comandá-los é grande", afirma a psiquiatra.
E o que dizer dos 80% de criminosos não psicopatas que estão nas cadeias? São bandidos por natureza ou por influência do ambiente? Esse ainda é um tópico para discussões inflamadas, freqüentemente temperadas por algum componente ideológico. A esquerda prefere apontar causas sociais; a direita, motivações individuais. Um estudo realizado em 2002, na Nova Zelândia, com mais de 400 homens, aponta para relações bem mais complexas entre genética e ambiente na formação da personalidade violenta. A atividade de um gene específico, chamado MAOA, foi examinada. Em algumas pessoas, o gene é mais ativo do que em outras – cerca de 37% dos homens possuem o gene de baixa atividade. Em estudos com ratos, esse gene era determinante na agressividade. Nos homens, porém, revelou-se uma interação curiosa. Os meninos que foram abusados na infância, mas tinham o gene de alta atividade, em geral se tornaram adultos ordeiros. O mesmo aconteceu com os que tinham o gene de baixa atividade, mas não foram abusados na infância. Foi só entre os que apresentavam uma conjunção de duas circunstâncias desfavoráveis – gene de baixa atividade e agressões na infância – que o comportamento violento, incluindo crimes como estupro e assassinato, surgiu com maior freqüência. "No debate antigo, costumava-se opor a influência da natureza à da criação, como se uma ou outra sozinha fosse determinante", diz a psiquiatra Terrie Moffitt, uma das autoras do estudo. "Hoje sabemos que natureza e meio ambiente agem conjuntamente." Uma pode ser a dinamite e o outro, o fósforo.
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